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A nobre e a plebeia


Ilustração: Andreza Setúval

Fazia um calor dos infernos e eu suava em bicas. Literalmente. Estava descalça, de calça jeans e camiseta, descabelada, com dezenas de papeis que indicavam o sitting de cada jornalista para o desfile da marca Jesus Del Pozo, estilista espanhol que faleceu em 2011, e com o qual tive enorme honra de trabalhar.


Na minha cabeça passavam apenas duas coisas: preciso de um banho e pre-ci-so da sandália que as modelos vão desfilar. Ok, talvez três coisas: tô com fome. Sou taurina, só pra registrar.

Terminei o sitting e corri me trocar. Senti o vestido grudar em mim enquanto o suor vertia da minha cabeça. E eis que uma das costureiras solta um grito: "Esse vestido está todo amassado! Deixa eu passar pra você". Meu primeiro pensamento: que fofa! Meu segundo pensamento: o vestido vai voltar pelando pra mim


Não quis raciocinar demais. Enquanto esperava o vestido busquei pelas mesas de costura qualquer migalha de pão, uma fatia de presunto serrano perdido. Nada. Coloquei o vestido quente no corpo, calcei sandálias do El Corte Inglés nos meus pés encardidos e saí correndo.


Cadê o nome dele?


Os jornalistas já estavam chegando e encontro o José María, meu professor da pós-graduação um pouquinho alterado. Ele não encontrava o lugar dele.

José María é um jornalista importante de Madri. Ou pelo menos era. Tentei contornar a situação dizendo que a identificação da cadeira tinha caído, que alguém trocou as cadeiras de lugar, enfim… O que minha criatividade me permitia na hora eu aleguei. Eu sabia o que tinha acontecido. Eu sabia, mas não poderia JAMAIS admitir. Eu apenas me esqueci de colocar o nome dele na lista. Simples assim. Arranquei o nome de uma jornalista qualquer e pedi pra ele sentar. Saí, antes que continuasse a questionar e eu pudesse ser descoberta.

Acomodei os demais jornalistas e esperamos a chegada da irmã do Rei Juan Carlos, a Dona Elena.

Parênteses


Hoje o rei é o filho do Juan Carlos, Filipe VI, e a rainha é a Letizia. Quando morei em Madri ela era princesa ainda e visitou uma feira têxtil em que eu havia me candidatado para ser assessora de imprensa e acabei como promoter. Ela passou pelo estande do Brasil e cumprimentou todo mundo. Ela me deu a mão e eu achei isso a coisa mais incrível do mundo. Decidi que não lavaria as mãos pelo menos até o fim do dia. Juro que me achei importante.


A realeza


Ok, a regra é a seguinte: nada acontece antes da chegada da Família Real. E assim que eles chegam o que quer que seja precisa começar. Imediatamente. Dona Elena chegou e foi como um despertador: todo mundo se sentou, as luzes diminuíram e a música começou. Parênteses: não é o caso do meu despertador, que eu nem ouço, inclusive. Fecha parênteses.


O desfile foi incrível. Todo mundo chorou, todo mundo aplaudiu e eu fiquei feliz de ter conseguido organizar o desfile todo com sucesso. E fiquei mais feliz ainda de ter encontrado comida e uma brisa fresca da noite que avançava. Ah, e um par de sandálias de uma das modelos dando sopa no backstage. Arranquei as minhas baratex e coloquei as da modelo. Do alto dos meus 1.77 m + uns 15 cm de salto me senti uma drag queen, maaas… who cares?



Tenho estas sandálias até hoje. Foram meu presente de despedida. ❤

Então Jesus Del Pozo me chamou. Ele estava conversando com a Dona Elena. Cheguei titubeando em cima do salto (a sandália é inteira de madeira e definitivamente não foi feita para usar, só pra desfilar). Então Jesus me apresentou Dona Elena e eu feliz de novamente me sentir parte do clã real a abracei entusiasmada.


Neste mesmo instante três brutamontes me cercaram e senti que havia um clima estranho no ar. A festa inteira parou. Fiquei atônita e pensei: fiz merda.

Jesus começou a rir e quebrou o climão dizendo que Dona Elena a-do-ra o Brasil e que eu era brasileira e que blá, blá, blá… Não podia ouvir mais nada. E na minha cabeça só passavam 3 coisas: O que eu fiz? Preciso tirar estas sandálias. Por que faz tanto calor aqui?


A conversa foi breve, óbvio, e na sequência uma das minhas amigas me puxou de canto e me revelou que eu jamais (JA-MA-IS) deveria ter tocado na Dona Elena. Que eu deveria ter feito uma reverência. Reverência? Reverência do quê? Nunca me contaram isso. A Família Real se mandou da nossa terra há uns bocados de anos. Fingi que não me importava muito com esses protocolos. Por dentro me martirizava por não ter me informado melhor.


Eu estava exausta. Foram meses de preparativos e só me restavam duas coisas: tirar as sandálias killers e ir pra casa tomar um banho. Reverência mesmo só me restava fazer para a minha humilde (e aconchegante) cama de plebeia.



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